Nesta terça-feira, 18, estreia no Passando a Régua, na categoria Social do site, uma coluna periódica, com crônicas narrativas escritas pelo empresário ourinhense Jair Vivan Júnior.
São textos que visitam o passado, de autoria de quem nasceu e viveu em Ourinhos nas décadas de 1950, 1960 e 1970.
Jair estudou jornalismo no Rio de Janeiro e foi pesquisador de mercado em Brasília na década de 1980. Hoje é empresário no ramo alimentício em Ourinhos. Confira a sua primeira crônica no site:
Donos da Rua
Sapato era para ir à missa, festas e visitas a casa de amigos dos pais, o normal era andar descalço, calcanhar cascudo, tampo do dedão nem pensar, de um pé que já vinha calejando de tanto topar paralelepípedos. Os cotovelos e joelhos, amortecedores e fiéis pontos de apoio, sempre ralados, é assim que se vivia quando o nosso mundo era a rua.
Nossas limitações eram os horários estipulados pela mãe e tinham que anteceder aos que o pai retornava para casa: hora do almoço e no final do expediente, dado o devido acréscimo do tempo que ele parava no bar.
Fora isto, eles nem imaginavam por onde andávamos e olha que era de ponta a ponta na cidade.
Nossos meios de transporte eram rabeiras em caminhões ou caronas em charretes e carroças que cruzavam a cidade. Quando em caminhão de cana, aproveitávamos para subtrair algumas para chupar, se em carroça de padeiro às vezes ganhávamos um pãozinho de sal, já que na maioria das vezes não tínhamos dinheiro para comprar os pães doces com aquele brilhante e convidativo creme amarelo forte.
A linha do trem era a guia para os percursos norte-sul e também a via mais rápida para chegar em casa e evitar atrasos que quando aconteciam terminavam mal, afinal era normal apanhar, cheguei a picar e jogar fora um rabo de tatu e quebrar uma varinha de marmelo (que nunca foram usados, era só pressão) e teve uma fase que já nem doía mais, mãe batia de leve, já surra de pai era mais caprichada, normalmente de cinta.
O trem também nos apoiava nos transportes quando às vezes íamos rumo ao Paraná até a próxima estação em Marques dos Reis, pendurados no último vagão da composição que normalmente era a cozinha, dependendo do cozinheiro, ganhávamos café e água ou éramos enxotados.
O problema era o retorno no próximo trem que quando não coincidia com os horários estipulados terminava em tragédia, mais uma surra para contar.
Teve a fase em que fui dono da bola, ganhei de natal uma de “capotão” número cinco, fiquei bonito, corri para entrar para o time dos meninos grandes, mas durou pouco, no meio do jogo a bola quicou para a rua, um caminhão passou em cima e já era, fui expulso do Estrela Vermelha FC. imediatamente, minha contratação durou no máximo meia hora.
Praça Mello Peixoto, década de 1950 (Foto: Franscisco Almeida Lopes)
Já cansado de usar calças curtas, andava traumatizado até com calção, afinal eu ouvia dos amigos do meu pai que já era um homenzinho, e de calça curta pô!
Fui resolver com minha mãe e ela disse que só quando acabassem as calças que eu já tinha, eu que sempre buscava saída para os meus problemas, saí desenfreado para acabar com aquela roupa fora de moda, me arrastando sentado no chão para puir o tecido. Minha mãe não comprou roupa nova, mas passou a reformar as calças compridas da minha irmã para meu uso, menos mal.
Vivíamos felizes, a rua era nosso lar, casa mesmo era só para comer, dormir e para os dias de chuva em que aproveitávamos para organizar nossas coleções de maços de cigarros, papéis de balas e bombons, tampinhas de garrafas, panfletos em geral, anúncio fúnebre que soltava uma tinta preta horrível, selos, figurinhas, rolhas de champanhe e tudo mais que parecesse interessante.
Não tínhamos recursos tecnológicos, mas nossa imaginação era fértil, tudo virava brinquedo, um toco de construção com uma das extremidades serrada em 45 graus dava um carrinho e uma opção para as rodinhas, eram tampinhas de garrafa cravadas com pregos.
Um filtro de óleo de automóvel, do tamanho de uma lata de Leite Ninho e cheio de furinhos, passava-se um arame pelo orifício que o atravessava de fora a fora e saía puxando e deixando o rastro riscado de óleo pelo caminho.
Um aro de metal e uma haste com uma curvatura na ponta para dar suporte e sair rodando nas passarelas lisas das sarjetas.
Com um carretel de linha dentado nas rodelas, fazíamos um tratorzinho: atravessando um elástico de um lado ao outro travados com duas fatias de vela para controlar a tração, quando torcido e solto, saía andando lentamente.
Bola de meia, canudo de folha de mamão para fazer bolinhas de sabão, saquinhos cheios de arroz para jogar bugalha, faquinha para jogar tatu, cipó trançado para usar de corda, pipas e carrinhos de rolimã.
De armamento tinha: arco e flecha, lança, besta, estilingue, caninho de antena para lançar canudinho de papel com ponta, às vezes até com alfinete. E o bornal para carregar a munição que era: Santa Bárbara, Mamona, pelotas de barro de olaria e alguns pedregulhos.
Içá com palito de dente espetado na bunda virava um ventiladorzinho. Comprado mesmo, só bolinhas de gude, pião de madeira com fieira, bolinha de bets, bilboquê, bambolê e mais uma coisa ou outra e só no Natal e dia do aniversário ganhava-se alguns presentes de lojas.
Meio que para fazer tipo, mandávamos o sapateiro confeccionar sob medida, munhequeiras para usar no punhos, se com três fivelas então era o máximo.
Após o jantar época em que ainda não tínhamos televisão, voltávamos para a rua, agora supervisionados pelos pais que colocavam cadeiras nas calçadas com a companhia de alguns vizinhos e me lembro bem do fio comprido conectado direto no relógio de energia com fusível de rosca, para alimentar o enorme rádio de válvulas sintonizado no Repórter Esso.
E assim íamos crescendo e adotando brincadeiras interessantes com as meninas como: pera uva, maçã (ainda não tinha salada mista), passa anel, balança caixão, mãe da rua, queimada, pega-pega, rela-rela, agacha-agacha, trepa-trepa e muitas intermináveis brincadeiras.
Ficávamos até a hora de entrar para dormir, enquanto os adultos se atualizavam, nós brincávamos incansavelmente nas ruas ainda desertas de automóveis, mas que viviam cheias de gente.