João Neto: Camisa de Flanela

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O frio de agora me faz voltar no tempo... Num outro inverno pedi pra minha mãe fazer uma camisa de manga comprida pra mim, ela passou uma lista com o material:

- 1,20m de flanela xadrez

- 10 botões da cor do tecido 

- 1 retrós de linha Corrente da mesma cor do tecido

- 50cm de entretela para os punhos e colarinho. 

Pediu pra comprar os aviamentos no Bazar Janda e o tecido na Casa dos Retalhos do Sr. Zé Orelhinha.

Noooooossa! A camisa ficou "massa", linda, confortável e quentinha! Sem contar os elogios de todos, a camisa de flanela chamava a atenção, as "mina" pirava.

O frio de agora sugere uma camisa quente, busco no guarda-roupas e resgato uma outra camisa de flanela, comprada ano passado, numa loja de departamentos, logicamente sem o mesmo glamour da camisa feita por minha mãe, exclusiva e aconchegante. 

Olho no espelho e percebo que, apesar da camisa, não sou mais menino, eu envelheci. 

E não me digam que envelheci aos poucos, não é verdade - é uma baita fake news, a gente envelhece de uma vez, assim: num estalar de dedos – páh!

O próprio espelho me apresenta desfigurado, com os cabelos envelhecidos... Putz, não avisaram ao menino da camisa de flanela que o tempo é implacável.... Planejei filhos para este ano, mas me dou conta que já tenho três netos.

Ainda ontem eu tinha 14 anos e estava levando minha carteira de trabalho para registro profissional, na selaria São José. Ainda ontem eu jogava bola no campo do seminário, ainda ontem eu era coroinha do Padre Bernardino.

Onde estive esse tempo todo e não percebi? Agora estou aqui, com o inalienável direito de deixar meu carro na vaga de idoso.

Me recuso aceitar a imposição da minha data de nascimento, eu ainda tenho idade pra pegar rabeira de trem no Carvoeiro e descer em Marques dos Reis, mergulhar no “Panemão” e, ainda por cima, roubar poncã no pomar do japonês na esquina da Imcal.

É certo que carrego uma caixa com losartana para controlar a pressão, tá certo que meus óculos têm bitola de 1,75 para cada “zóio”, mas me colocar na fila preferencial eu não aceito!

Será que não sabem? Eu dançava “passinhos” nos Terríveis... Eu vivi "os embalos de sábado à noite" na sua plenitude. 

A única parte aceitável dos meus sessenta e tantos é quando meus netos me vêem, abrem sorrisinhos sinceros, levantam os bracinhos e jogam o corpinho pra mim, dizendo: 

- Eu quero ficar com o vovô!!!!!

Aí meu coração chora de felicidade!

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Este texto é do escritor João Neto, um escritor do cotidiano, foi rotulado, pelo crítico Lau Pacheco, como "piloto da caravela da saudade", em virtude do resgate de momentos vividos na infância e adolescência em Ourinhos. 

Após ter seu conto "Ainda Bem Que Você Veio" viralizado nas redes sociais, ficou conhecido em todo o Brasil. Publicou seu primeiro livro de contos e crônicas em 2019.

João Candido da Silva Neto nasceu em Santa Cruz do Rio Pardo (SP) e veio para Ourinhos com 7 anos em 1967. Ele atuou na COPEL (Cia Paranaense de Energia) onde aposentou-se em 2019. Em 2012 se tornou escritor, tendo seus contos e crônicas publicados semanalmente na Folha de Londrina.