No final dos anos 80, eu trabalhava no Mappin, em São Paulo, mas decidi voltar pra Ourinhos, não me adaptei à cidade grande e ainda precisava fazer um curso superior de qualidade.
Fui até o sítio onde moravam meus pais, em Campos Novos Paulista e, percebendo que os dois estavam sofrendo sozinhos ali, decidi alugar uma casa e trazê-los morar comigo em Ourinhos.
Meus irmãos estavam todos casados e estruturando suas respectivas famílias.
Confesso que, naquele período, eu trabalhava dia e noite, para poder cuidar dos dois, portanto, meu curso superior teve, outra vez, que ser adiado.
Tinha duas coisas que minha mãe adorava:
Assistir o Programa do Silvio Santos aos domingos e, nos sábados, sabendo que eu trabalhava só até na hora do almoço, me esperava pra jogar baralho (buraco) com ela!
Eu sabia que ela gostava de jogar, ficávamos pelo menos três horas jogando... Ela tinha boa noção de jogo e muita sorte pra pegar coringa, quando ganhava ela ria feliz e falava:
- Não liga não, é sinal você está com sorte no amor!
Minha vida virou de ponta cabeça num dia frio de final de abril... Quando a gente jogava mamãe descartou um coringa:
- Hei, presta atenção, a senhora descartou um coringa!
Ela me olhou de maneira estranha e perguntou:
- Quem é você?
Fui até a cozinha, trouxe um copo com água e dei pra ela... Confusa ela bebeu a água, pedi pra ela descansar um pouco!
No outro dia fui até a casa da minha irmã, ela se encarregou de levar mamãe ao Dr. Fariz.
Nem sei se existia eletroencefalograma naquele tempo, só sei que o médico foi direto no diagnóstico: Mal de Alzheimer! Disse ainda que a doença era progressiva e degenerativa e que ela poderia apresentar mais anomalias mentais.
Realmente, minha mãe foi desligando do mundo aos poucos, feito uma vela se apagando, em um ano ela não conhecia mais ninguém, até perder completamente a memória!
Acompanhei toda decadência dela, sofri com ela, até o dia da sua viagem definitiva.
Confesso que, diante de seu sofrimento, por mais de um ano, cheguei a rogar para que Deus a levasse e abreviasse seu sofrimento!
Depois da sua morte, meu pai ficou na casa de minha irmã, voltei sozinho pra casa... Um clima terrível de solidão, o que não impediu que eu sentisse seu cheiro pela casa.
Fui dar uma olhada no quarto deles, ao abrir a porta ela rangeu triste, parecia chorar... A luz entrou no quarto junto comigo iluminando Jesus na parede sobre a cabeceira da cama, com os braços abertos e seu Sagrado Coração exposto com ar de tristeza. No criado mudo, ao lado da Bíblia aberta, uma vela apagada e consumida até a metade... Sua camisola surrada dependurada num gancho preso na parede. Esperando, ao lado da cama, seu par de chinelos velhos, dispostos lado a lado, sem saber que seus pés jamais voltariam! Na penteadeira sua escova de cabelo e um suave frasco de Leite de Rosas, tão a cara dela.
Antes de sair do quarto abri a gaveta do criado mudo, um caderno e uma caneta presa no seu espiral, estava aberto bem na página de nossa penúltima partida, quando ela me ganhou de lavada e sorriu dizendo que eu estava com sorte no amor!
Era domingo, liguei a TV, estava começando o programa do Silvio Santos:
“Agora é hora de alegria, vamos sorrir e cantar, do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar... “.