João Neto: Todos Filhos de Deus

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Estávamos em boa velocidade, pois, naquele instante, o que queríamos de verdade era voltar pra casa, tomar um banho e descansar, afinal, tivemos que roçar mais de 30 metros de mato pra livrar os cabos de energia das árvores.

O som da camionete ligado, o locutor da rádio, com a típica voz melosa, avisa:

- Onze e meia agora, entramos na última meia hora do nosso “Love Songs”, curtam aí, Lionel Ritchie – "Stuck on You".

Além dos ventos repentinos de outono, chovia e fazia um friozinho que dispensava o uso do ar condicionado, o que nos deixava à vontade pra baixar um pouco os vidros da camionete.

Passando em frente ao posto de combustíveis observamos um caminhão bitrem no acostamento e uma mulher sem rosto, em pé, conversando com o motorista.

Andamos mais um pouco e meu parceiro brincou:

- Você acha que nosso trabalho é duro, imagina o dessa mulher!

Pois é, desconsiderando o lado irônico do papo do amigo, comecei imaginar o que leva uma pessoa se sujeitar a isto... Pode apostar que por trás dessa jovem haverá um drama familiar ou uma tragédia social.

Certamente, aquela dama está labutando pra levar comida para a família, leite para os filhos.

Engana-se quem pensa que as mulheres da noite não têm família.

Ela está ali, na penumbra, exposta às intempéries do tempo, com seu uniforme tradicional de trabalho: minissaia curtíssima e decote generoso para mostrar seus questionáveis atributos!

Está ali, alugando, as partes penetráveis do seu corpo... Seu cliente, de higiene e imunidade duvidosas, talvez pechinche no preço, talvez ofereça uma bebida, talvez até se retire sem pagar, ela não tem ninguém por ela.

Entramos em acordo que o trabalho da mulher sem rosto é mais insalubre que o nosso, sem carteira assinada, sem benefícios sociais, sem patavina nenhuma, e amanhã, certamente, além do leite, deve ter um monte de contas a pagar!

Chegamos na base no exato instante em que o sino da matriz ecoava o som da meia-noite!

Ainda bem que a Bondade Divina não discrimina ninguém, não importa se somos eletricistas, motoristas, carteiros ou prostitutas – somos todos filhos de Deus!

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Este texto é do escritor João Neto, um escritor do cotidiano, foi rotulado, pelo crítico Lau Pacheco, como "piloto da caravela da saudade", em virtude do resgate de momentos vividos na infância e adolescência em Ourinhos. 

Após ter seu conto "Ainda Bem Que Você Veio" viralizado nas redes sociais, ficou conhecido em todo o Brasil. Publicou seu primeiro livro de contos e crônicas em 2019.

João Candido da Silva Neto nasceu em Santa Cruz do Rio Pardo (SP) e veio para Ourinhos com 7 anos em 1967. Ele atuou na COPEL (Cia Paranaense de Energia) onde aposentou-se em 2019. Em 2012 se tornou escritor, tendo seus contos e crônicas publicados semanalmente na Folha de Londrina.