Por João Neto: A mulher do sonho

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Hoje, enquanto esperava a moça pesar o pão (no meu tempo de menino os pães eram vendidos por unidade!), ao olhar para o balcão de confeitos, notei uma bandeja abarrotada de sonhos... Nesse instante meu relógio do tempo girou pra trás e me fez lembrar de uma senhorinha que todos os dias, na oficina onde eu trabalhava, adoçava nosso café da tarde com deliciosos e generosos sonhos, recheados com goiabada e exageradamente banhados no açúcar refinado!

Nunca soubemos o nome dela, para nós, ela se chamava “a mulher do sonho”.

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Ela vendia pra todos nós, fiado, anotava na sua surrada caderneta, para receber só no dia 5 do mês seguinte, dia do nosso pagamento.

Todo dia 5 era sagrado, separar os 22 cruzeiros da mulher do sonho.

Nunca nenhum de nós se preocupou em saber onde morava a mulher do sonho, e quem se preocuparia em saber onde mora a mulher do sonho?

Por tempos ela adoçou nossas vidas com seus sonhos até que, numa tarde chuvosa, a mulher do sonho não apareceu e, não apareceu no dia seguinte, e no outro, e no outro!

Acho que foi o Leonel quem se preocupou em saber onde morava nossa credora... Me pediu ajuda e eu saí com minha “Garelli”, pela Barra Funda, perguntando se alguém sabia onde morava a mulher do sonho.

Perguntei pro Seu Vitório, não soube responder... Para Seu Orlando do bar, também não... Para o Seu Lazinho, barbeiro, nem notícia... Até que a Dona Chiquinha do Bode me passou o endereço!

Fui lá no Pátio da Rede, depois do Carvoeiro, e encontrei a casa onde morava a mulher do sonho... Uma casa de madeira, de cor marrom avermelhado e desbotado, assim como todas as casas do lugar!

Ao observar as portas e janelas trancadas perguntei para a vizinha da mulher do sonho, e ela respondeu:

- A Dona América faleceu dia 20... Morreu dormindo, emendou!

-Tem alguma pessoa da família morando aqui?

- Não, ela morava sozinha, era viúva do Seu Olegário da Rede Ferroviária!

Olhei mais uma vez para o portão trancado, percebi vasinhos de violetas murchos, enfileirados na janela de madeira, fiquei pensando que naquele mês não pagaríamos a mulher do sonho, a doce mulher que tão docemente adoçou nossas tardes laborais.

Agora, aqui na padaria, disfarço meu olhar choroso, vendo a bandeja de sonhos.

Desejo, sinceramente, que Dona América possa ter conquistado um lugar no paraíso.

Se quando eu morrer, Deus me conceder a honra de ir para o céu, quero poder encontrá-la novamente, gostaria de acertar as contas com ela, não com dinheiro, pois no céu valores materiais são dispensáveis, mas com um olhar de gratidão, por ter tornado nossas tardes mais doces!

Descanse em paz, Dona América!

Este texto é do escritor João Neto, um escritor do cotidiano, foi rotulado, pelo crítico Lau Pacheco, como "piloto da caravela da saudade", em virtude do resgate de momentos vividos na infância e adolescência em Ourinhos.  

Após ter seu conto "Ainda Bem Que Você Veio" viralizado nas redes sociais, ficou conhecido em todo o Brasil. Publicou seu primeiro livro de contos e crônicas em 2019.

João Candido da Silva Neto nasceu em Santa Cruz do Rio Pardo (SP) e veio para Ourinhos com 7 anos em 1967. Ele atuou na COPEL (Cia Paranaense de Energia) onde aposentou-se em 2019. Em 2012 se tornou escritor, tendo seus contos e crônicas publicados semanalmente na Folha de Londrina.